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Sei lá! A vida é uma rota discricionária e repleta de contradições. Assim, tentar defini-la seria tarefa impossível. Por isso, resta-me vivê-la, na esperança de um dia descobrir (finalmente!) o seu significado…
Pediu-me a mão esquerda. Eu dei-lha. Depois ficou a olhar para ela com toda a atenção possível, como quem olha para um mapa e percorre as linhas para saber onde é que aquele itinerário vai dar. Olhou-me nos olhos. Sorriu. Baixou de novo a cabeça, e voltou a olhar para a palma da minha mão. Por fim, disse: “vais ter uma vida longa. Vais começar a trabalhar tarde. Não procures o amor, porque já o conheces, e vais ter três filhos.”Tinha doze ou treze anos, e a vida nessa altura sorria-me, e por isso, ingenuamente acreditei naquelas palavras, daquela senhora, que passava as tardes sentada num banquinho, à beira da estrada, que ficava a caminho da minha escola. Não recordo, porém, o dia em que deixei de a ver.
Hoje, olho para a minha mão enrugada, cheia de marcas do passado, calejada, magra e inerte. Um leve sorriso espreita nos meus lábios. Olho para a linha da vida, e confirma-se. Com noventa e dois anos, posso considerar que tenho uma vida longa. Mas, depois olho para as outras linhas, e não correspondem ao presságio. E as dúvidas surgem irrequietas dentro de mim. Será que também na palma da nossa mão, se constroem novas estradas? Será que o próprio destino muda de rumo? Será que quem me leu o futuro contido na minha mão, se enganou? Ou me enganou? Será que fui eu que me enganei quando acreditei que o futuro estava traçado, e que eu apenas tinha de o seguir? Ou será que nem sequer acreditei que tinha futuro?
Uma lágrima surge. Outra e mais outra. O passado regressa ao presente por breves instantes e instala-se confortavelmente nas minhas lembranças. Recordo então os momentos de juventude que me foram roubados. Não. Não comecei a trabalhar tarde. Antes pelo contrário. Ainda nem tinha terminado o nono ano, quando fui obrigada pelo meu padrasto a abandonar o liceu. Tinha tantas expectativas. Tantos sonhos. Queria descobrir o mundo. O sentido das coisas. Mas tudo isso se perdeu com a morte do meu pai. Eu e a minha mãe ficámos sem nada. A minha mãe foi obrigada a casar com o primeiro pretendente que apareceu, para fugirmos da rua, da fome e da miséria. Não a culpo por isso, sei que o fez pensando que assim ficaríamos bem. Mas, a verdade é que não ficámos. Fomos reduzidas a duas escravas. Trabalhávamos nos campos, cuidávamos das hortas, tratávamos das refeições, lavávamos a roupa. Não fomos nunca, mulher e enteada, fomos meras criadas. A minha mãe morreu, tinha eu dezanove anos. A partir daí tudo mudou. A razão que me prendia àquela terra era ela, precisava de a proteger. Só por ela eu tinha aguentado aqueles anos de autêntica servidão. Sem ela a prender-me àquele lugar, pude fugir, porque sabia que ele já não poderia magoa-la mais.
Mais do que as dores no corpo, o que nos mata mesmo, são as dores na alma. Porque essas, não se curam com pomadas, analgésicos, ou injecções. Podem não se sentir tão ferozmente com o passar dos anos, mas quando a memória passa por lá, há sempre um calafrio que nos corre pela espinha, e a dor é imensamente indescritível de tão dolorosa que é. Ai… e o amor é perito a deixar dessas feridas que não saram.
Depois de deixar aquela terra, de más recordações, vim para Lisboa. Vim para a cidade, e o sonho voltava a despertar. O primeiro objectivo era encontrar um trabalho para sobreviver. Os primeiros tempos, não foram fáceis. Bati a várias portas. Mas estas mantiveram-se fechadas. Consegui sustentar-me graças às gorjetas amealhadas durante aqueles anos, que recebia nas feiras quando ia vender fruta e hortaliça. Se não fosse isso, talvez hoje não estivesse aqui, a contar a minha história.
Duas semanas passaram, até que, fui aceite como servente na casa de uma família considerada importante à época. Afinal, não há mal que sempre dure, e a minha vida parecia estar a endireitar-se, e seguia o seu rumo normal.
Mas, o vento mudou quando me apaixonei. Chamava-se Afonso, e era o filho mais novo da família “Souto de Andrade”. Só o conheci três meses depois de ter chegado àquela casa, porque ele tinha estado em Inglaterra a completar os estudos. Recordo o dia em que o vi pela primeira vez. Fui abrir-lhe a porta, e, sabem aqueles momentos que vemos nos filmes, em que tudo à nossa volta pára? Foi o que me aconteceu. Fiquei petrificada. Aqueles olhos verdes penetraram-me intensamente. Fiquei completamente embasbacada. Mas passado o choque inicial, perguntei-lhe quem era, e ele soltou uma gargalhada. Só depois percebi que aquele era o menino. O tão mencionado menino Afonso.
O que vos vou contar a seguir não é uma história nova e única. É simplesmente mais uma história da criada que se apaixona pelo patrão. O patrão dá-lhe esperanças, promete-lhe mundos e fundos, faz-lhe promessas de amor eterno, e no fim, deixa-a, e casa-se com alguém que pertence à mesma classe social que ele. E, fim da história.
Daqui resultou um coração destroçado, e impreterivelmente desfeito em mil pedaços. Nem os maus tratos do meu padrasto me magoaram tanto como este sentimento de revolta, de angústia, de desilusão, de vazio, de raiva, de ódio. Senti-me lixo, um farrapo, um objecto. E senti-me impotente, completamente fraca. Deixei de acreditar no Amor, deixei de acreditar na Cinderela, deixei de acreditar na felicidade.
Os sonhos voltaram a adormecer, e apenas se permitiam a incomodar-me durante a noite, porque aí, eu não os podia controlar.
Quando pude, deixei aquela casa, e fui trabalhar para um Restaurante. Novamente tudo se recompôs, pelo menos aparentemente, já que a alma, ninguém a vê. Ou, quase ninguém a vê. Porque, houve alguém que encontrou a minha alma perdida por ai, e veio tentar devolvê-la ao meu corpo. Mas não é fácil, destrancar uma porta que está fechada a sete chaves, e na vida temos de fazer opções. Ou desistimos de viver, fechamo-nos no nosso mundo, e permanecemos intocáveis, e ninguém nos magoa. Ou, arriscamos e damos oportunidade a que outros entrem no nosso mundo, que o toquem, que o alterem, mas que o tornem melhor. Havendo sempre o risco de ficarmos pior do que estávamos, temos de escolher.
Eu fui cobarde, e não voltei a abrir mais as portas. Hoje sei que podia ter sido feliz. Aquele Homem, que reapareceu na minha vida sob a forma de Amor, tinha sido o miúdo que me chamou namorada pela primeira vez. Rejeitei-o com medo de voltar a chorar, de voltar a sofrer. Olho para o passado, e hoje, se pudesse, teria feito tudo de maneira diferente. Nada me garante que efectivamente seria feliz. Mas, a verdade é que passados estes anos todos, também não o fui.
A palma da minha mão não me mentiu em tudo. Eu é que dei um entendimento diferente ao que foi acontecendo na minha vida. Agi quando devia ter ficado quieta, e parei quando tinha um caminho à minha frente para onde poderia correr. Hoje, apenas permanece vincada a linha da vida, que me lembra que será longa. Mas, de que serve uma vida longa quando todas as outras linhas foram apagadas com as minhas mãos?
Texto escrito para a Fábrica de Histórias
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