Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]
Sei lá! A vida é uma rota discricionária e repleta de contradições. Assim, tentar defini-la seria tarefa impossível. Por isso, resta-me vivê-la, na esperança de um dia descobrir (finalmente!) o seu significado…
Afinal todos somos seres frágeis. Independentemente de toda a força que insistentemente fazemos questão de mostrar, ou que efectivamente tenhamos, a verdade é só uma: há momentos na vida em que todo esse poder nos escorrega das mãos, e em que apenas nos resta continuar a fingir que vivemos.
Nunca a tinha visto por ali, mas a sua presença não me deixou indiferente. E a minha curiosidade foi-se espicaçando, com uma infinidade de perguntas. Quem seria aquela mulher detentora de uma beleza indiscreta? Como se chamaria? O que faria ela ali? Porque tinha ela aquele ar tão triste?
- Boa tarde! Vai desejar tomar alguma coisa? – disse-lhe.
- Boa tarde. Sim! Quero um chá! Um chá de maçã! Maçã e canela. – disse- me, pausadamente, como se mentalmente estivesse a pensar no que ia dizer, palavra por palavra, sem me dirigir o olhar.
- É tudo? – perguntei-lhe.
- É! Sabe, não me é permitido pedir-lhe mais nada. – respondeu-me, mantendo-se cabisbaixa.
- Com licença. Trago já!
Assentei o pedido, mas aquelas palavras ressoaram na minha cabeça, “não me é permitido pedir-lhe mais nada”. Mas que raio! O que quisera ela dizer com aquilo? Afinal, não era só a sua postura que levantava uma nuvem de suspeição, também a forma como ela deixava flutuar as palavras eram enigmáticas.
Enquanto preparava o chá, fui olhando para ela de soslaio. Era de facto uma mulher misteriosa.
- Aqui tem o seu chá! Se desejar mais alguma coisa…
- Obrigada! Mas, como já lhe disse, não me é permitido pedir-lhe mais nada! – retorquiu.
- Desculpe, mas não concordo nada, pode pedir-me tudo o que quiser! – disse-lhe eu num tom de brincadeira, na tentativa de lhe desfazer aquele semblante tristonho.
- Já não vou a tempo. – dito isto, tirou uma das luvas da sua mão, e puxou para junto de si a chávena de chá.
- Está com a pressa? – intrometi-me eu.
- Não! Deixei de ter pressa há muito tempo!
- Nunca a tinha visto por aqui, está de visita? – intrometi-me mais uma vez.
- De visita? Sim! Estou de visita ao passado! – quando terminou a frase olhou-me. Pela primeira vez tive contacto com os seus olhos.
- Boa visita então. – disse-lhe por fim, e retirei-me.
Que olhar tão triste, que olhar tão profundo, que olhar tão, tão familiar… Sim, aquele olhar pareceu-me estranhamente conhecido. Mas de onde? Que inquietação.
Voltei a olhar para ela. Que sensação estranha. A verdade é que tenho a mania de observar as pessoas, mas aquela mulher estava a tornar essa minha mania numa obsessão. Era como se quisesse descobrir tudo o que aquela pose escondia. Era como se quisesse desvendar a razão daqueles pequenos olhos não brilharem. Era como se ela própria me estivesse a pedir para a olhar. E a verdade, é que podia estar um dia inteiro a olhar para ela, que jamais me cansaria de o fazer.
Ela olhava compenetrada para a chávena, como se fosse a única coisa que existisse no mundo naquele momento. Talvez estivesse a pensar em alguém, ou simplesmente tivesse tido um dia mau e estava a reflectir sobre ele. Ou não. Ela estava ali para visitar o passado, por isso, os seus pensamentos certamente andariam a passear por esse passado.
Terminou o chá e levantou-se delicadamente, depois de deixar o dinheiro em cima da mesa. A verdade, porém, é que aquela mulher se revigorou, como se fosse outra mulher, uma mulher confiante, autodeterminada, capaz de enfrentar qualquer tempestade. Antes de sair olhou-me e sorriu-me, por fim saiu sem que eu tivesse tempo de lhe retribuir o sorriso. Mas, mais uma vez tive a sensação de que conhecia aquele sorriso de algum lugar. Aquele sorriso doce, e delicado, e ao mesmo tempo traiçoeiro.
Envolto nestes pensamentos, dirigi-me à mesa dela, peguei na chávena e no dinheiro, quando reparei que ela se tinha esquecido da luva. Peguei nela, e vi duas letras bordadas M. F. .
Madalena? Claro, aquele olhar e aquele sorriso. Como é que não a reconheci? Deixei cair a chávena que se desfez em pedaços. Corri para a porta, mas já não vi ninguém.
Voltei para o interior do salão, fiquei a olhar para a luva, e para os bocados da chávena jazidos no chão. Era agora eu, quem visitava o passado…
Durante os dias que se seguiram, esperei que ela voltasse para recuperar a luva esquecida. Mas não voltou. A vida retomou o seu rumo. E este foi mais um episódio da minha vida. Um sonho inacabado, que o tempo às vezes faz questão de me recordar.
A vida dá tantas voltas, exige-nos tanto, e as adversidades fazem-nos fortes. No entanto, somos tão frágeis se nos deixam cair.
Texto inspirado no desafio da Fábrica de Histórias
"Veja bem, nosso caso é uma porta entreaberta
Eu busquei a palavra mais
certa
Vê se entende o meu grito de alerta
Veja bem, é o amor agitando meu
coração
Há um lado carente dizendo que sim
E essa vida da gente gritando
que não"
A subscrição é anónima e gera, no máximo, um e-mail por dia.